Friday, June 18, 2010

Quando aprendi a ser forte!

Antes de qualquer coisa, quero dizer que realmente compensa ler esse texto até o fim, e também sugerir que leiam o livro todo mesmo se não gosta ou não entende nada de yôga, esse livro, principalmente esse trecho me fez ter ainda mais certeza, do quanto ainda tenho pela frente e de como algumas coisas que acontecem em nossa vida são pequenas, visto que dores todos temos e cada um carrega a sua. O livro é Quando é preciso ser forte, do grande Mestre e acima de tudo pensador e ótimo escritor De Rose.

Dos meus vinte aos quarenta anos de idade vivi uma fase
que chamo bem-humoradamente anos de penúria porque foi
um período em que as campanhas dos maledicentes conseguiram
me impor um estado de extrema privação. Era uma
época em que a diferença entre comer e não comer dependia
de conseguir vender um tubete de incenso, ou não, naquele
dia.
Pelo menos eu tinha onde morar, pois dormia na sala de
aula. E isso não é coisa pouca. Imagine se em tal situação
ainda tivesse que alugar um apartamento ou algo semelhante.
Além do mais eu gostava de dormir no chão, pois
estava na moda dormir em tatame. Bem, tatame mesmo eu
não tinha, mas dispunha dos colchonetes de Yôga que se
usavam naquela altura para praticar.
Foi um momento na minha vida em que só conseguia trocar
de camiseta quando algum aluno apiedado me dava uma
nova de presente. “Ô, De. Essa camiseta tá muito velha.
Fica com esta aqui que eu ganhei do meu pai.” Salvou-me a
felicidade que sempre tive dentro de mim, talvez decorrente
da meditação que desencadeia um estado de regozijo interior
(ánanda) e, graças a isso nunca me senti infeliz nem tive
pena de mim mesmo. Prosseguia fazendo o meu trabalho
com entusiasmo e com a esperança de que se trabalhasse
bastante, com o tempo as coisas melhorariam.

A bigorna dura mais do que martelo que a agride.
Autor desconhecido[...]

Quando comecei em 1964 eu não entendia nada das
burocracias de legalização e contabilidade. Assim, contratei
um despachante para legalizar minha escola. No entanto,
dizia ele, não era possível registrar um estabelecimento de
Yôga, pois esse segmento não estava previsto na lei. Então,
para que o meu alvará fosse expedido, ele precisaria declarar
que era uma “academia de ginástica e Yôga com vendas de
produtos para esse fim”. Dessa forma, a prefeitura permitira
que eu me estabelecesse. Conversa! O despachante é que
não sabia fazer o registro corretamente e fez como conhecia,
ou seja, tudo errado. Entreguei minha contabilidade a um
contador. Foi o segundo erro. Seja qual for o profissional,
devemos supervisionar o seu trabalho e não nos acomodarmos.
Eu confiei e relaxei. Deveria estar tudo correto e legal.
Em 1969 me visitou um fiscal da receita estadual e pediu
para ver as notas fiscais e os livros caixa e diário, bem como
os balancetes. Aquilo para mim era grego. Encaminhei o
pedido ao contador. Mas ele não entregava nada. O fiscal
esbravejava e ameaçava, ainda mais percebendo que lidava
com um gurizote leigo naqueles assuntos. [...] A cada visita
o fiscal ficava mais agressivo. Até que me deu uma derradeira
data para a entrega dos documentos. Eu telefonava
outra e outra vez ao contador... e nada. Na última noite do
prazo fui à casa dele e disse-lhe que eu não sairia de lá sem
os documentos. Documentos ele não tinha. Mas me deu uma
folha de papel com uns rascunhos a lápis e disse que era
para apresentar aquilo.
No dia seguinte, quando o fiscal chegou entreguei-lhe o
nefasto papel. Ele olhou com desdém aquela folha rabiscada
a lápis e perguntou pelos livros. “Não tem livros”, disse-lhe.
“O contador mandou entregar essa folha aí.” Ele, então,
resmungou, fez as contas e arbitrou uma multa tão alta que
ele sabia perfeitamente que aquele jovem maltrapilho não
teria condições de pagar. Estava, com isso, assinando a
sentença de morte da minha escola e da minha profissão,
pois nenhum clube, academia, SESC, ACM me deixava trabalhar.
Se eu não tivesse minha própria escola, não poderia
continuar dando aulas de Yôga. [...]
Assim, fiquei esperando pelo edital na minha porta, lacrando-
a, e me impedindo de entrar para trabalhar. Era uma
questão de dias.
Nesse meio tempo fui visitado por uma candidata de vinte
anos que desejava praticar Yôga. Expliquei-lhe a situação e
disse-lhe que não poderia cobrar nada dela, pois era bem
possível que chegasse para a aula e minha escola já tivesse
sido fechada. Portanto, podia vir fazer Yôga gratuitamente
enquanto eu ainda estivesse de portas abertas. Quando fechasse,
acabava. Ela praticou, gostou, viu que o trabalho era
sério e lamentou que a escola estivesse em vias de ser fechada.
Aí, propôs-me um negócio. Ela pagaria minha
enorme suposta dívida com o estado, mais multas estratosféricas,
e em troca eu lhe daria aulas sem cobrar nada ad
æternum. Eu não estava em condições de discutir. Aceitei,
comovido. Ela foi lá, pagou e limpou o meu nome.
Dali a mais alguns dias, propôs-me outro negócio.
– Você não queria abrir uma escola em Copacabana2? Eu
posso vender um apartamento de minha propriedade, comprar
uma sala e alugar para você.
Mesmo tendo sido vítima da traição com a proposta daquele
mal-intencionado sócio anterior, agora a situação era diferente.
Esta jovem já havia quitado as minhas dívidas. Aceitei
agradecido.
Ela vendeu seu único imóvel, para comprar uma sala na Av.
Copacabana, 583/306. Mas seu dinheiro só daria para a
entrada mais a reforma. O restante do valor da compra seria
parcelado em 36 meses. Então combinamos que eu pagaria
um aluguel mensal suficiente para saldar as parcelas da
transação. Não sobrava dinheiro nem para comer, mas eu me
encontrava exultante, pois, estava instalado numa salinha
2 Copacabana estava no auge. Nas décadas de 1960 e 1970 era a “princesinha do
mar”. aconchegante, montada do jeito que eu queria, no bairro sonhado
e tinha uma sensação de segurança.
O nome daquela jovem era Eliane Lobato. Tornamo-nos
parceiros, amigos, companheiros e terminamos casados.
Mais do que a todos os seres humanos, tenho por ela a
maior e a mais emocionada gratidão. Nem sei o que seria
de mim hoje se ela não me tivesse dado a mão na década
de sessenta e depois, novamente, em 1970. Imagine-se o
que faria um homem de vinte e tantos anos que tivesse
tentado tudo para desempenhar um trabalho honesto e,
sistematicamente, tudo lhe fosse tomado. Para onde a
adrenalina e a testosterona teriam conduzido aquele ser
humano que não tinha saída? Será que teria dado coisa
boa? Será que teria se revoltado e partido para uma vida
menos louvável? Creio que posso dizer sem sombra de
dúvida que devo o que sou hoje à Eliane.
Nessa época encontrei pessoas que me ajudaram tanto que
sua lembrança me comove. Em 1971 eu havia me casado
com Eliane Lobato. Por aquela altura estávamos os dois sem
um vintém, pois o que Eliane tinha, ela investira na compra
e reforma da sala de Copacabana. O que eu pagava de aluguel
ia amortizar a aquisição do imóvel. Para nós não sobrava
nada. Certo dia, precisei mandar instalar um suporte
para pastas suspensas sob a minha mesa da sala de diretoria.
Enquanto o marceneiro, um senhor de seus sessenta e tantos
anos, concluía o trabalho, Eliane, agora com 21 aninhos me
chamou na outra sala e choramingou:
– Tô com fome... Você acha que nós vamos poder almoçar?
Mesmo estando noutro aposento, respondi baixinho:
– Não sei. Depende de quanto ele for cobrar pelo serviço.
Concluída a colocação do suporte, perguntei quanto era. O
velhinho me respondeu, com um doce sorriso:
– Não é nada, não. Vá almoçar com a sua menina.
Até hoje me rolam as lágrimas cada vez que recordo aquele
momento. Quando conto esse caso, sempre passo vergonha,
pois não consigo conter a emoção, como agora ao escrever.
Passado algum tempo, Eliane me fez outra proposta:
– DeRose, quem está pagando o imóvel é você mesmo,
então, porque não passá-lo para o seu nome? Eu comprei a
sala por 54.000 cruzeiros. Você me compra esse imóvel por
74.000. Com a diferença, mais uma herança que receberei
em vida do meu pai, compro um apartamento na Rua Cinco
de Julho.
Perceba como ela articulou inteligentemente para me ajudar
sem arrasar minha auto-estima. Ela não me ofereceu nenhuma
esmola. Deu-me condições para que comprasse com
dignidade minha sala própria, meu primeiro imóvel. E ainda
o comprou por 54.000 e revendeu por 74.000 pouco tempo
depois, numa época quase sem inflação, em 1971. Ela foi
muito lúcida.

Não só uma grande pessoa, de caráter, de coração sincero, mas também uma grande mulher, não se encontra, se reconhece.